Assistir aos telejornais tornou-se sinônimo de perplexidade. Há os que criticam o sensacionalismo de alguns programas de veio policial, julgando ver nos apresentadores apenas reafirmações de um país desesperançado, assentado no limítrofe entre as próprias angústias e efêmeros prazeres. Daí o estado atônito de desconsolo, que nasce no olhar ressabiado que encara o aparelho televisor como um algoz: 'Boa noite. Corrupção no Governo: mais 3 indiciados por corrupção na Máquina Pública'... E por aí vai. É impossível pinçar um fragmento que seja das notícias que se avolumam sem que haja pelo menos uma matéria dedicada à corrupção. Já dizia Émile Durkheim (1858-1917) que 'a religião é coisa eminentemente social'. [Nesse caso, o sociólogo francês não se referia à política, e sim aos atos religiosos propriamente ditos.] É razoável o questionamento sobre a plausibilidade ou não dessa minha remitência, já que o assunto é 'outro'. E eu explico.
Parece bem claro que a sociedade brasileira adotou um "segmento 'religioso'" marginal, paralelo às religiões tradicionais, como as conhecemos. Os 'rituais' de sonegação, improbidade administrativa, desvio de verbas, despotismos e nepotismos, entre tantos outros ilícitos 'celebrados' como ritos nas sessões ordinárias e extraordinárias dos bastidores legislativos, executivos e judiciários, realizam-se sob a 'bênção' de líderes carismáticos de vários partidos políticos que, sob o 'manto sagrado' da im[p]unidade, protagonizam verdadeiros 'milagres', fantasticamente articulados com vistas a endinheirar ainda mais os templos de Mammon, aliás, os 'templos pessoais' de cada beneficiado.
Os lares brasileiros tornam-se filiais da 'nova religião', a 'corrupção'. Através dos cultos realizados no horário nobre das TVs, a nação testemunha, dia a dia, os pequenos desvãos descobertos pelas investigações policiais, verdadeiros paraísos fiscais e minas de ouro, sob o resvalo do consentimento público. Tornou-se comum compartilhar opiniões sobre as atrocidades morais dos representantes populares. O cidadão comum experimenta a cada dia o desgosto de 'presenciar' as cifras bizarras subtraídas ao erário, subtraídas do próprio cidadão. No entanto, vai-se mais um dia, e outro e outro, e a fantasia 'mítica' da justiça cede espaço ao 'sagrado' consentimento coletivo às ações de corruptos e corruptores. E a fé no amanhã reina uma vez mais. Termina mais uma edição do telejornal. Mais uma enxurrada de 'demônios' é varrida para debaixo dos tapetes. Enquanto isso, a indignação omissa alimenta o mito alienante da 'justiça divina' que há de ser feita sobre 'todos' os homens. Enquanto isso, diviniza-se a corruptela, glamouriza-se os 'deuses do peculato e das fraudes'. A corrupção sagra-se comum. E o pior, a corrupção 'sagra-se'.
Artigo publicado no 'Observatório da Imprensa', ed. 673/SP, em 22 dez 2011. [http://is.gd/P0Id29]
Imagem: © RIA Novosti. Mikhail Kutuzov on www.en.rian.ru]
Os últimos anos testemunham uma avalanche de obras voltadas exclusivamente para a autoajuda. [Nada contra.] Nem contra as editoras, muto menos contra os leitores. Menos ainda contra os 'pobres' autores que, de 'pobres' mesmo, já não têm nada. Mas essa realidade - não só de mercado, econômica, sociológica e etc. - não deixa de representar um golpe na humanidade. Sim, um golpe. Porque tanto o homem de letras quanto o matuto, instruído na ciência do dia a dia, reconhecem sua pequenez diante de um universo 'intocado', de um planeta em colapso, de uma mente ainda perdida, mesmo 'vasculhada' pela psicanálise, de fato: o Ser ainda continua tão incógnito quanto as incógnitas com as quais trabalha.
Urge então, no coração de cada um, e com tamanha ferocidade, a velha-nova carência de [re]encontrar o sentido da existência. Que sentido é esse? Será que a vida é um pêndulo que, uma vez recebendo o primeiro impulso, assume, resignadamente, a função de embalar o tempo dentro de si mesmo, enquanto permanece na condição de observador-observado? Nada mais longe de minha pretensão do que dissertar um "a" que seja sobre as tendências 'inatas' do homem a ribombar suas catarses, quer no primeiro grito do passado, quer nas poesias medievais ou nos 'enter's' internetizados da 'pós-modernidade'. É uma 'loucura' pensar na vida. Esse labirinto de 'interditos', 'liberdades', buscas incessantes e 'clausuras'. Tanta gente presa num 'tridimensional cósmico': 1) olhos obrigatoriamente atados ao presente; 2) mente dividida entre o passado, presente e futuro, resultando em 3) pés e mãos algemados por uma angústia tosca, ancorada na superfluidade dos desejos e caprichos.
E então, imerso num mar de lama de que é composto o caos da instabilidade existencial - se é que existe uma - a criatura ergue os braços, na busca pelo rompimento das incertezas e inseguranças que molestam seu coração a cada segundo, faz sua prece, acende sua vela, canta sua canção de revanche contra a tristeza, faz promessas, jejuns, lamuria sua desonestidade social - e individual - e enfim, vê se esgotar mais uma cota de sua vividez; assim, percebe a dificuldade de enxergar o que há poucos 'dias' parecia tão nítido; o atleta sente pesar-lhe a caminhada, mesmo pequena; a luz do sol parece não ser suficiente. Mais uma vez vitórias implicam derrotas, inundações implicam aridez, e o sentido da vida permanece oculto em conceitos, dogmas, doutrinas e teorias. Não sei a resposta de muitas coisas. E muitas outras ainda permanecerão obscurecidas pela mediocridade de um espírito insolente à procura da bondade e da alegria.
Os últimos anos testemunham um olhar exclusivamente superficialista. Na totalidade de seu desinteresse o olhar desatento talvez nem perceba que a 'vida' pode não estar sendo vivida do lado certo, assim como a roupa que se veste ao avesso. Quem sabe um olhar [também invertido, também 'avesso'] inverta tantas situações de desconfortos emocionais, que tanto têm invertido um mundo avesso à simplicidade, à harmonia e ao reconhecimento de que todas as coisas - apreensíveis ou não - não passam de flechas, cravadas que serão no alvo certo tão logo percebamos o quão próxima de nós está a resposta a questionamentos os mais diversos.
Artigo publicado no jornal 'Tribuna de Minas', 27 de outubro de 2011.
Imagem: Criança de Madagáscar Foto@EPA/Kim Ludbrook [on Google]